Autor: Manoel Lage
INTRODUÇÃO
New England IPA ou simplesmente NE IPA é um estilo (embora ainda não seja considerado um estilo pelo BJCP) criado na região de New England nos EUA que rapidamente ganhou adeptos pelo país e, assim que chegou, virou febre no Brasil.
O que a distingue de uma American IPA? Basicamente, ela é uma American IPA com alta turbidez, sensação de cremosidade em seu corpo, baixo amargor e elevado aroma e sabor de lúpulo. Todos esses elementos concatenados a tornam quase um milk-shake de lúpulos.
Daí, entende-se um pouco por que de tanto frenesi e alta aceitação do estilo aqui no Brasil. Basicamente, a NE IPA “chegou de voadora”, agradando a gregos e troianos. Por não ser tão amarga, torna-se bem atrativa para os consumidores mais iniciantes ou aqueles que simplesmente não são amantes de um alto IBU. Apesar do baixo amargor, usa-se uma quantidade de lúpulo maior ou igual a de uma American IPA, porém focando em adições tardias e dryhopping. Dessa forma, o estilo proporciona elevado aroma e sabor de lúpulos; estes nos remetem a frutas cítricas e tropicais, o que torna a cerveja bem refrescante para nosso clima quente.
É importante atentar para o fato de que, apesar de muitos consumidores verem as NE IPA como “IPAs turvas” e alguns cervejeiros terem a turbidez como um objetivo a ser alcançado (alguns chegam a usar farinhas durante a fervura), este não é um objetivo primordial característico do estilo. Seu foco está em dois fatores: (a) aroma e sabor de lúpulo (sem um alto amargor); e (b) corpo delicado e cremoso. Portanto, a turbidez, por si só, não é um objetivo primário e sim algo conseguido através dos processos usados para atingir os outros dois principais objetivos citados acima, que, por sua vez, são desejados como efeito sensorial em nosso paladar.
Abaixo, discorreremos sobre suas principais características técnicas para ajudar àqueles que pretendem fazer um exemplar do estilo.
ÁGUA
Muitos cervejeiros dão pouca atenção para o ajuste de água. Você pode fazer uma ótima cerveja sem ajustar a água? Claro que sim. Você estará fazendo a sua melhor cerveja sem ajustar a água? Claro que não. Ajuste de água, para certos estilos, é tão importante quanto a receita e, certamente, com a NE IPA é assim. Segundo Kimmich, dono e cervejeiro da “The Alchemist” – “muitos cervejeiros se restringem ao não fazer pesquisa suficiente sobre o tratamento de sua água”. Já Shaun Hill, dono e cervejeiro da Hill Farmstead, diz que, na sua experiência, o que mais contribui para um mouth feel cremoso em suas NEs é o alto nível de cloreto em sua água.
O perfil da água de uma NE IPA é diretamente responsável pelo corpo da cerveja e a sensação de cremosidade que sentimos ao degustá-la. Proporções de 1/1 até 2,5/1 entre Cloreto/Sulfato faz com que o corpo da cerveja seja realçado (sabe-se que algumas cervejarias usam até 4/1), ao contrário de sua irmã do oeste que usa relações entre cloreto/sulfato de até 1/6.
Estudos recentes apontam a direta relação de altos níveis de cloreto na água com baixa floculação da levedura. Há também evidências de que a floculação da levedura tende a “arrastar” óleos dos lúpulos com as células do levedo, o que nos leva a crer que um nível baixo de floculação, tanto pela cepa escolhida quanto pelas adições de cloreto, ajudam a manter um bom sabor/aroma de lúpulo na sua cerveja.
Sugestão de perfil: Ca (120) Mg (12) Na (18) SO4 (100) Cl (180) HCO3 (0)
GRIST DE MALTES
Não há uma regra muito clara para o grist de maltes. Um erro comum entre os cervejeiros ao criar uma receita de NE IPA é pensar em adições de trigo e aveia para alcançar a turbidez que tanto se vê no estilo. Esses adjuntos, na realidade, devem ser usados (quando usados) com o foco de atingir o corpo desejado. A turbidez, nesse caso (não há como negar que estes grãos ajudem a turbina-la), seria alcançada como uma consequência da busca por um corpo ideal (mouth feel), ela não deveria ser a causa do uso desses grãos. Fazendo um ajuste de água devido, correto processo de lupulagem e uso de cepas de levedo de baixa floculação, já se conseguirá atingir um nível de turbidez suficiente. Portanto, o grist de maltes pode ir de acordo com o gosto do freguês, mas sempre buscando um corpo cremoso exigido no estilo. Existem cervejarias que usam trigo e aveia em altas proporções (até 20% do grist), outras que usam em baixa proporção; e ainda aquelas como a The Alchemist, em sua receita da Heady Topper, que sequer usam qualquer grão com alto teor proteico.
Sugestão de grist: Pale/Pilsen (80-100%); trigo (0-10%); aveia em flocos (0-20%). Outros maltes como cristais claros podem ser usados para ajuste de cor, mas sempre em proporções baixas. O foco não é o sabor do malte e sim dos lúpulos.
LUPULAGEM
O perfil de lupulagem das NE é bem agressivo no que tange à quantidade. Em sua grande maioria, são cervejas com uma alta quantidade de gramas de lúpulo por litro, quantidades essas que chegam a 20g/L em alguns exemplos comerciais.
O mais importante no que diz respeito à lupulagem é o processo usado. Nada de adições durante a fervura. No máximo, algo no first wort para um ajuste de IBU. As adições na panela são geralmente feitas já no flameout / whirlpool, minimizando, assim, o IBU e tentando carregar o máximo possível de óleos para o fermentador.
Quanto ao dryhoping (DH), este geralmente é feito em etapas. É importante frisar que cada cervejeiro e cervejaria têm sua técnica e você deve utilizar a que lhe trouxer melhores resultados. No caso das NE IPA, uma ou toda a carga de lúpulo é usada antes do final da fermentação (há uma cervejaria canadense que adiciona a primeira carga já na transferência do mosto para o fermentador). Isso é feito para se conseguir a famosa “biotransformação” (transformação de alguns compostos de lúpulos em outros) e também para que a atividade da levedura ajude a distribuir melhor os óleos e mantê-los em suspensão. Assim, busca-se atingir um perfil aromático geralmente não conseguido com técnicas comuns.
Um dos tabus do mundo cervejeiro é de que só se deve adicionar o DH depois que a fermentação acabar, já que há a possibilidade da atividade das leveduras expulsar os aromas do fermentador junto com o CO2. Nas NE IPAs, as adições são geralmente feitas com FGs abaixo de 1,020 (embora há cervejeiros(arias) que as fazem com 50% da fermentação), quando a fermentação ainda está ativa, para fazer a biotrasformação acontecer, porém não tanto a ponto de expelir os óleos aromáticos. Algumas cervejarias usam apenas uma carga de lúpulo e outras usam até 3 cargas em dias separados (inclusive pós-fermentação).
Os lúpulos usados devem ser aqueles com perfil frutado/cítrico como Citra, Mosaic, Galaxy, Amarillo, Huell Melon, Vic Secret, Cascade, Rakau. Mas lembre-se: não se restrinja a essas sugestões, pois a magia de nosso hobby está exatamente em experimentar o novo.
Sugestão de lupulagem: First Wort (0-15 IBU); Whirpool (5-10g/L); DH (8-15g/L)
Obs: importante citar a recomendação de não se usar nenhum agente filtrante / clarificante.
LEVEDURA
As leveduras usadas pelas cervejarias que fazem algumas das melhores NE IPAs do mundo, como Hill Farmstead, Trillium, Tree House, The Alchemist,Tired Hands, são um assunto sempre controverso e quase que enigmático. Muitas cervejarias usam o que eles chamam de “House Yeast” e não divulgam qual é essa levedura. Para alguns, é segredo de estado e eles protegem bem o seu “tempero caseiro”.
O que é sabido é que são leveduras capazes de performar a biotransformação, puxar um aroma esterificado bem característico, que complementa muito bem os tipos de lúpulos usados nas IPAS, e de baixa floculação. Ou seja, tendem a ficar em suspensão na cerveja por muito tempo, o que contribui bastante para a turbidez das NE.
Cepas muito usadas em receitas originais e outras que tentam clonar estas já consagradas cervejarias são as leveduras Conan (usada pela The Alchemist), e Londom Ale III (acredita-se que é usada pela Hill Farmstead e Tired Hands) da Wyeast (W1318).
O certo é que nada aqui é de caráter obrigatório. Contanto que a levedura “deixe o lúpulo brilhar” (Tortori, JP) e contribua com a turbidez por sua baixa floculação, qualquer uma pode ser usada. Há ainda a possibilidade de blends de leveduras serem utilizados para se atingir algum caráter específico de sabor/aroma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo foi escrito para servir como consulta para quem quer desbravar este novo estilo. Apenas gosto de frisar que aqui não há nenhuma verdade absoluta. A verdade absoluta é a que serve para o seu processo e a que agrade o seu paladar. Afinal de contas, a parte mais legal de ser um cervejeiro caseiro é poder testar, inovar e sempre variar.
Agora, rapaziada: às panelas.
Sumário de dicas:
- Ajuste de água privilegiando altas concentrações de Cloreto;
- Grist de maltes discreta. Pode-se usar altos níveis de trigo e aveia (até 20% em conjunto) para se atingir um mouth feel cremoso;
- Lupulagem em altas quantidades. Quase todas as adições na parte quente no flame out / whirlpool. Altas quantidades de DH com a fermentação ainda em curso;
- Fermentos de baixa floculação como Conan (Vermont Ale) e o Wyeast1318 (London Ale III); e
- Muito importante: consumam ela fresca!
REFERÊNCIAS
https://www.homebrewersassociation.org/how-to-brew/tips-brewing-new-england-ipa/
http://scottjanish.com/chasing-mouthfeel-softness/
http://inboundsbrewing.com/crafting-a-new-england-ipa-recipe-part-1-why-so-hazy/
https://www.fivebladesbrewing.com/totes-mcoats-new-england-pale-ale/